Com mais de 20 anos de experiência na área de relações governamentais no Brasil e nos Estados Unidos, Renard Aron é autor do livro “Lobby Digital – Como o cidadão conectado influencia as decisões do governo e das empresas” e fala sobre o tema em entrevista exclusiva à Inteligov. Confira!
O que é o lobby digital?
Já que estamos no meio da pandemia, vale a pena falar o que o lobby digital não é. Ele não é o que acontece hoje: o aumento das conversas via Zoom, por exemplo, com os deputados. Isso é apenas uma transferência momentânea do processo normal do lobby tradicional, das reuniões one-on-one entre um deputado, senador ou secretário. Isso é uma questão que pode até continuar ou não após a pandemia, mas não é o que eu entendo como lobby digital.
O lobby digital pode ser caracterizado por três diferenças do lobby tradicional. Primeiro é quem faz esse lobby. No modelo tradicional, é o lobista, o presidente de uma entidade, o membro de uma Organização Não Governamental (ONG) ou de um sindicato.
O lobby digital democratiza o processo, ao trazer novas pessoas para dentro. Primeiro as celebridades, como alguns youtubers. Pode ser desde uma chef como a Paola Carosella, até uma cantora como a Anitta. E eles não só defendem causas sociais, como o meio ambiente ou a questão racial, mas entram em temas econômicos. Então, no lobby digital quem faz o lobby muda. Além dessas celebridades, o principal “quem” é o cidadão. O cidadão passou a ter no meio digital a capacidade de influenciar o processo de política pública, não individualmente, mas vários individualmente ao criar uma massa crítica. Então você tem centenas, milhares e até milhões de pessoas participando do processo. Esse é o lobby digital. Quem faz lobby mudou.
Em segundo lugar, como se faz lobby também mudou. Não é uma reunião tradicional, fechada entre o lobista e o interlocutor, é uma live da Anitta no Instagram para 48 milhões de seguidores. Esse é o lobby digital, que se dá nas plataformas sociais, pode ser no Facebook, no Instagram, no YouTube; o meio passou a ser digital e a lógica é outra.
E por último são os temas que passam a fazer parte da agenda. O lobby digital, por chamar o cidadão para a conversa traz novos temas para o debate e empresas se veem compelidas a se engajar. Eu sempre cito o Tim Cook, presidente da Apple, e Marc Benioff, CEO da Salesforce, porque ambos se engajaram em questões LGBTQ no contexto da política pública. Fizeram lobby para avançar um tema social. Isso é um pouco do lobby digital.
Esse conceito se aproxima muito de alguns conceitos de advocacy. Na sua visão, por que lobby digital e não advocacy? Qual o conceito que você daria para advocacy? Existe advocacy digital?
São duas coisas. Primeiro, se você olhar a definição da palavra lobby, ela vai dizer “influenciar a política pública”. A definição não se incomoda com “quem” é o tema. Esse é o primeiro ponto. Quando trago o exemplo do Tim Cook e Marc Benioff é o poder econômico clássico fazendo um trabalho frente ao legislativo para influenciar políticas públicas sobre o tema LGBTQIA+ – há zero impacto econômico direto nas duas empresas. Aquela ideia de que ONG faz advocacy porque é o bem comum não casa, porque tanto o Marc Benioff quanto o Tim Cook estavam trabalhando em causas sociais. É o poder econômico fazendo lobby ou advocacy?
Normalmente, no Brasil, o terceiro setor se apoderou da palavra advocacy em substituição ao lobby pela conotação negativa da palavra. Eu tenho um certo problema com a ideia de diferenciar lobby de advocacy usando “quem” é o tema. Essa ideia do bem comum de um lado e o interesse econômico do outro para diferenciar o lobby está começando a ruir, porque a sociedade tem se associado à empresas para atuar no Congresso, como ocorreu com a Uber e a questão da mobilidade social, e você vê o poder econômico atuando em questões sociais como meio ambiente por causa da pressão social.
Aqui nos Estados Unidos, e aí eu vou concordar, existe uma sobreposição entre o que eu chamo de lobby digital e o que aqui se chama de digital advocacy, porque a ideia do advocacy é que ele acontece quando você engaja o público na defesa de um tema.
São conceitos diferentes para realidades diferentes entre Estados Unidos e Brasil. Há coisas que a gente importa e outras que são um pouco diferentes, com conotações diferentes. Então, fundamentalmente, o importante é entender que não importa o tema ou quem está fazendo a pressão, o que importa é a forma como ela é feita, certo?
Sim, do ponto de vista do termo como é entendido aqui, o advocacy mobiliza o cidadão, enquanto o lobby direto é o clássico, é o one-on-one, e o lobby indireto é quando você mobiliza a sua base, prática conhecida como Grassroots.
A origem do termo Grassroots, ou “raiz da grama”, remete à localidade, é mobilizar a base no distrito do deputado. Em vez de fazer o lobby direto em Washington você faz usando funcionários, trabalhadores, moradores de uma região. Quando vai para o digital, deixou de ser Grassroots. O termo continua sendo usado, mas eu vejo um problema porque a lógica do Grassroots tradicional é a mobilização da base, enquanto no digital não tem base. É totalmente diferente mobilizar na internet, porque o cidadão pode morar em qualquer lugar, não tem local, você mobiliza o cidadão em qualquer lugar do país. O Grassroots tradicional não sumiu, mas deve ficar no domínio do lobby tradicional.
Você pode citar algum exemplo?
Um exemplo recente que envolve o cidadão é a medida provisória 910, conhecida como MP da grilagem. São dois exemplos; o primeiro é que os supermercados na Inglaterra decidiram, embora eu não saiba qual foi o fator motivador, enviar uma carta aberta para o Congresso brasileiro dizendo que se a MP fosse aprovada, eles boicotariam produtos brasileiros nos supermercados.
Indo além, na Alemanha, uma ONG de Berlin organizou uma petição e conseguiu mais de 400 mil assinaturas para pressionar os supermercados alemães a fazerem a mesma coisa.
Temos a pressão do cidadão alemão sobre um tema sendo discutido no Congresso brasileiro. Isso que é o lobby digital; as fronteiras desaparecem, perdeu-se primeiro a ideia de localidade e depois do âmbito nacional. Agora, o stakeholder passou a ser internacional. Aplicar a lógica do lobby tradicional a este novo mundo não dá certo.
Antigamente, você ia via uma entidade de classe para que esta fizesse pressão no governo americano para que este fizesse pressão no Itamaraty para que este pressionasse o Ministério da Agricultura. Agora, o cidadão vai lá e pressiona. Mudou. Não tem mais base, não há Grassroots.
Temos inúmeras discussões no Direito Constitucional brasileiro sobre democracia participativa. Como você entende o lobby digital e a participação da comunidade, da sociedade civil, através de petições, de engajamento em pautas de interesse econômico ou social como modo de construção de uma democracia participativa?
Eu uso o termo “democratização do lobby”. Quando o cidadão tem a possibilidade de assinar uma petição, mandar um e-mail, postar no Facebook de um deputado, usar hashtags, falar e expor sua visão sobre um tema sem estar no Congresso, ele passou a participar do debate de políticas públicas.
Eu não só falo da democratização do lobby em si, mas argumento que o debate de políticas públicas virou público. Novamente, muda a lógica. A maneira de conversar sobre o tema passa a ser distinta da reunião one-on-one. Quando o debate de políticas públicas é democratizado e está aí para todo mundo participar, ele muda substancialmente.
Se por um lado fortalece e democratiza o processo de debate de políticas públicas, ao levá-lo a público, como nas redes sociais, existe por outro lado uma desvantagem: ele não se presta a uma discussão aprofundada do tema. Política pública é complexa e discutir nas redes pode empobrecer a conversa. As redes sociais demandam uma nova maneira de conversar que resulta, várias vezes, numa conversa baseada em palavras de efeito, uma vez que não há tempo para debates profundos.
No entanto, com o tempo essas questões serão endereçadas de uma maneira ou outra, porque deixa de ser novidade e existirá uma adaptação, mas no curto prazo corre-se o risco de discussões rasas. Um exemplo disso é a “pílula do câncer”. Foi um debate altamente emocional, onde a sociedade participou e pressionou o Congresso, que aprovou em quatro semanas um Projeto de Lei que claramente violava a lei do país. Tanto que dois meses depois o Supremo disse que não era constitucional. Esse é um exemplo radical, não é sempre que acontece, mas o risco passou a existir porque o ambiente digital acelera muito o debate. O debate digital, pela dinâmica das redes sociais, aumenta o risco de tsunamis.
Então, como comunicar políticas públicas em um espaço que é público? Você precisa entender como engajar a sociedade e uma palavra pode fazer a diferença. São nomes do tipo “PL do Veneno” e “PL do Retrocesso”. É isso que o lobby digital vai demandar de quem vai querer participar desse novo ambiente, porque, nesse exemplo, a palavra veneno já traz uma associação, não é preciso explicar sobre o que se trata, quais as potenciais consequências, porque o cérebro já faz uma associação direta: veneno é ruim. Com o retrocesso ocorre a mesma coisa. Isso é o que vai acontecer no debate, esse é o lobby digital. Como você conversa sobre o tema vai ter que ser repensado, porque o perigo de decisões precipitadas é real.
Seguindo esse caminho onde falamos de democracia, você falou bastante sobre as redes sociais e como o debate pode ser mais superficial. Nós vemos teóricos ressaltando essa onda de políticos com discursos populistas que têm causado mudanças significativas na estrutura das nações democráticas no mundo inteiro. Esse movimento toma sua chama das redes sociais. Você acha que esse novo debate é uma causa ou uma consequência? Como o lobby digital e o uso da internet para engajar grandes públicos em promoção de determinadas políticas públicas pode enfraquecer a democracia, ironicamente, já que há mais gente no processo? Para onde vamos?
Primeiro, eu acho que ao contrário do processo político, o processo de políticas públicas ainda não foi muito afetado por isso, pela desinformação e pelas fake news. Há poucos exemplos disso, mas um deles é o caso do Brexit, onde foi usado o medo de uma invasão muçulmana para motivar vários cidadãos a votarem contra a permanência da Inglaterra na UE. Esse é um exemplo de uma política pública que foi impactada pela utilização mal-intencionada das redes sociais.
Acho que existe espaço para que ocorram exemplos similares. O risco existe, mas penso de forma pendular. Acho que as plataformas estão lentamente entendendo que elas têm impacto na democracia. Algumas plataformas entenderam isso de forma mais rápida e criaram algumas barreiras, outras, têm tomado mais tempo, mas a pressão da sociedade vai levá-las a reduzir o impacto negativo que têm sobre a democracia.
No entanto, no curto prazo, estaremos sujeitos ao risco da discussão não ética de políticas públicas nas mídias sociais.
Falando um pouco sobre os nossos atores, como você enxerga o impacto para empresas e setores da economia brasileira? Como estão se ajustando a essa nova realidade? Você acha que conseguimos avançar rápido? O que falta e quais impactos podem acontecer se esses atores que desempenham a defesa de interesses no brasil não souberem jogar esse novo jogo?
Hoje o lobby tradicional e digital coexistem. É importante ressaltar que o lobby digital deve fazer parte de uma estratégia, ele não existe no vácuo. Por exemplo, quando fazer uma campanha? É preciso entender a tramitação de um Projeto de Lei. Como levar a sua mensagem aos deputados e senadores? Quando levar a petição para o Congresso? A campanha e o engajamento online não podem estar descoladas de uma estratégia. Todo o conhecimento de um lobista sobre o processo legislativo e regulatório, por exemplo, não mudou, o que mudou é que existe uma nova ferramenta. O mundo digital obedece a regras distintas e se você não participa dele, você vai ser pego de surpresa.
Hoje, no Brasil como nos Estados Unidos, mais e mais as empresas estão tomando ciência que esse novo jogo já está sendo jogado. Acho que isso ocorre mais nos EUA e menos no Brasil, e uma maneira de entender esse “mais e menos” é olhar para o ativismo empresarial. Eu não vejo como separar o ativismo empresarial do lobby digital, porque ambos fazem parte desse novo contexto.
O lobby tradicional tem sua própria lógica que faz sentido num contexto de 10 anos atrás. Mas existe um novo contexto e ele “vive” muito mais no mundo digital. Então, vou te dar um exemplo de como o lobby digital e o ativismo empresarial se conectam. Em 2018, em Parkland, na Florida, houve o assassinato de 17 estudantes. Na sequência, a sociedade americana se escandalizou, obviamente, e várias empresas começaram a tomar atitudes por causa da pressão da sociedade. Então, a empresa de aviação Delta decidiu acabar com o programa de descontos para os associados da National Rifle Association (NRA). Diante disso, a NRA, entidade de classe que representa a indústria de armas de fogo, foi pressionar a bancada republicana da assembleia legislativa da Georgia a retaliar contra a Delta e ameaçaram eliminar uma redução tributária, da ordem de US$ 40 milhões, que estava sendo discutida na assembleia se a Delta não voltasse atrás. Isso é uma questão social que se conectou com relgov. O CEO da Delta disse que os valores da empresa não estavam à venda, a assembleia votou contra e a empresa perdeu US$ 40 milhões.
Esse é o novo contexto que se apresenta para as empresas onde o relgov vai ter que entender as questões que preocupam a sociedade para ajudar o CEO da empresa a se posicionar e compreender as consequências do posicionamento sobre questões sociais no Congresso. As empresas brasileiras estão começando a entender este novo cenário, as americanas já entenderam há mais tempo. Quando o movimento “Black Lives Matter” chegou no Brasil foi a primeira vez, na minha visão, que empresas brasileiras se sentiram compelidas a se posicionar em função da pressão social.
Antes, o lobista tinha que entender o cenário econômico e político, hoje ele precisa entender a sociedade. O contexto mudou radicalmente. Acho que hoje as empresas brasileiras, principalmente as companhias que têm interface com o consumidor, estão começando a entender esse novo mundo, onde serão obrigadas a se posicionar sobre temas sociais que não as impactam diretamente e economicamente.
A gente tem o exemplo agora da Magazine Luiza, que está fazendo uma seleção apenas com pessoas negras e isso causou um burburinho sobre o racismo e debates que aqui são muito novos, diferente dos Estados Unidos. Esse caso da Delta, por exemplo, a interação entre marketing e a área de relgov se tornou mais relevante? As empresas estão percebendo isso no Brasil?
No caso da Magazine esse é o futuro, principalmente para as empresas com interface com o consumidor. Elas vão ter que decidir quem é o seu público e se posicionar. A ideia de “eu sou para todos” ficou para trás. Ficar em cima do muro é coisa cada vez mais do passado.
As empresas vão tentar empurrar isso com a barriga, mas, inevitavelmente, vão ter que se posicionar, porque a sociedade vai demandar. As empresas terão que se estruturar para trabalhar em conjunto; marketing, comunicação, recursos humanos, relgov. Hoje, o posicionamento tem que ser macro, tem que ser da empresa. Não dá mais para as áreas trabalharem sozinhas num modelo compartimentado, principalmente as empresas mais antigas, as legacy companies, estas terão que acelerar esse processo de colaboração por pura necessidade. Em empresas mais novas, como Google, Uber e Airbnb, essa nova geração, a conversa é outra, pois elas já nasceram nesse mundo e entendem esse novo mundo. São as antigas que terão que repensar como as estruturas das áreas conversam entre si.
Acho importante diferenciar empresas que têm em seu DNA o ativismo corporativo, ou seja, a empresa que já nasceu com isso. Um dos maiores exemplos é a Patagônia. Recentemente ela entrou com uma ação contra o governo Trump quando a administração decidiu reduzir o tamanho de um parque nacional. Isso para mim é ativismo puro, a empresa não está preocupada com a repercussão negativa pois entende o seu público. Então quando a gente pensa sobre o fato das empresas estarem prontas ou não é preciso fazer algumas diferenciações: há as empresas que nasceram com DNA ativista, as que já têm um histórico de ativismo e as empresas que começaram a entender agora que precisam de um mínimo de ativismo, essas são as menos preparadas, são aquelas que tentaram se posicionar, mas não foram felizes no posicionamento. Estas também correm o risco de serem cobradas pela sociedade, a responderem a pergunta sobre o que elas realmente estão fazendo – e isso ocorre porque elas não estão conectadas com a sociedade.
Hoje, para uma empresa fazer um trabalho sério e atuar em questões sociais ou econômicas, ela precisa estar conectada com a sociedade. Isso é algo novo e as áreas dentro das empresas terão que se adaptar. O engajamento com a sociedade não deve ficar limitado ao marketing ou cidadania corporativa. Um entende do produto e o outro dos desafios sociais. Só que agora temos um cidadão que também é consumidor de políticas públicas. As empresas têm que entender e traduzir os desejos deste novo consumidor tanto do ponto de vista do produto como do ponto de políticas públicas.
Sobre a obra que você criou, por que escrever um livro sobre lobby digital? Qual a importância de termos uma obra como essa?
A primeira motivação para escrever o livro foi que há pouca literatura em português sobre relgov. Existem alguns livros antigos que abordam o lobby tradicional, e uma nova leva com uma visão mais atual, mas não existe nada sobre o novo lobby e isso não é exclusividade do Brasil. Eu desconheço um livro que trate especificamente sobre o lobby digital.
Além disso, o livro não foi escrito para ser acadêmico, mas para democratizar o conhecimento. Por isso ele tem linguagem acessível, conversacional e muito storytelling. É para ser fácil e simples, inclusive para quem não entende nada de lobby.
A segunda motivação foi pessoal. Eu ainda estava na Johnson & Johnson quando percebi que precisava entender este novo mundo. Governos estavam chamando o cidadão para dentro do processo de elaboração de políticas públicas. A inovação não estava vindo das empresas, mas do governo e das ONGs com suas campanhas e petições. Então, eu comecei a estudar, ler, e escrever e de maneira orgânica o livro foi ganhando vida. Até o seu término, eu não tinha uma visão final do que seria.
A terceira motivação foi abrir espaço para uma conversa mais transparente sobre lobby. Eu fiz lobby, com vivência aqui nos Estados Unidos e no Brasil, e o livro traz o argumento de que lobby é normal, que todo mundo pode fazer e que não é sinônimo de corrupção.